sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Aos praticantes da Umbanda Esotérica: aspectos da Tradição retificados e ratificados


Aos praticantes da Umbanda Esotérica: aspectos da Tradição retificados e ratificados


Acabo de assistir ao vídeo Religiões Afro-Brasileiras - Ifá na "sala de estar": a valorização de uma doutrina como estilo de vida, publicado no blog de Pai Rivas.

Nele, uma série de questões são trazidas à discussão, mas como o próprio título da publicação anuncia, a tradição de Ifá merece destaque maior.


O famoso médico legista Nina Rodrigues, no início do século XX, demonstrou que o Ifá era proveniente da tradição africana da etnia jeje e seu signário sagrado era muito próximo aos hieróglifos egípcios. Este dado registrado por Nina Rodrigues não havia sido lido com muita proeminência. Digamos que ficou esquecido no meio de tantas compilações históricas que ele fizera sobre os africanos que chegaram ao Brasil quando da diáspora pela escravidão.  

Eis que Pai Rivas encontra este dado na obra de W.W. da Matta e Silva intulada Macumbas e Candomblés na Umbanda. Nesta obra, o fundador da Umbanda Esotérica afirma a importância do Ifá africano, o mesmo Ifá que ele próprio havia revelado alguns de seus importantes sinais.


Pai Matta, no entanto, não deu destaque ao Ifá em sua ritualística cotidiana. Embora seu tabuleiro sempre estivesse lá, ele próprio não desmembrou e não compartilhou do sistema de valores inerente ao Ifá. Como Nina Rodrigues atestou, o Ifá era africano e, embora ele não tenha discrimado nada muito além disso, sabe-se que o Ifá não é apenas um mero jogo oracular, mas ele está totalmente vinculado com uma ética específica, o que equivale a dizer que aqueles que o vivenciam integralmente, possuem um estilo de vida adequado ao sistema de valores africanos.


Mas o que seria esse sistema de valores africanos? Será que eles podem ser aplicados à vivência brasileira? Penso não ser tarefa fácil descrever o sistema de valores africanos, até porque a África é um continente com países, etnias diversas e que, certamente, já não são mais os mesmos de um ou dois séculos atrás. Por outro lado, é possível apontar alguns elementos que se ajustaram perfeitamente ao Brasil. Como Pai Rivas discorre no vídeo, enquanto os homens ocupavam-se com muitas outras tarefas, as mulheres ficaram responsáveis por reger e conduzir a vivênncia religiosa. Eram elas e não eles que determinavam os rituais, que iniciavam, que conduziam a tradição. Tratava-se de um "regime" majoritariamente matriarcal em uma época que as mulheres pouco e nada tinham de liberdade e direitos. Neste sentido, os candomblés liderados pelas Yás eram centros de contra-cultura.


Pois bem, na década de 1950 e 1960 Pai Matta "explode" a Umbanda Esotérica no Brasil. Neste período, a antropologia já havia mostrado que todos os povos tinham suas especificidades e riquezas culturais e, portanto, caía por terra a ideia de que alguns povos ditos "primitivos" evoluiriam rumo ao padrão de cultural ocidental europeu, modelo de civilização. Acontece que um período anterior, no fim do século XIX e início do século XX a história brasileira importou uma teoria conhecida como racismo científico, a qual discriminava negros amparada pela ciência. Eram os discursos científicos validando, autorizando e legitimando a exclusão étnica, racial e espiritual. E, embora, a partir da década de 1940 o racismo científico já fosse uma teoria superada, as manchas custaram a sair (se é que saíram totalmente). Não basta que algumas linhas sejam escritas em um livro acadêmico para que o lastro do que expressam seja imediatamente praticado. Há uma distância entre a teoria e a prática social que delongam alguns anos para ser reduzida.


Quero dizer com isso que, embora Pai Matta fizesse uso do Ifá e tenha sido o primeiro a desvelar seu signário, ele ainda não deixava o Ifá e tudo o que ele represetava no centro de sua prática litúrgica. Isto porque, ainda era muito forte expressões como  "isso é coisa de negro" no meio em que ele passou a viver após sua saída de Pernambuco. Pai Matta teve a primazia de mostrar e revelar os sinais sagrados de Ifá, porém, optou na época em concordar com o que mais era valorado socialmente: a cultura branca indo-europeia evocando suas literaturas várias e não optou por relevar a cultura africana. Não podemos esquecer, é claro, que a entidade que ele mais trabalhava chama-se Pai Guiné D´Angola (respectivamente, trazendo a tradição sudanesa e bantu), porém, no que tange à ética, a Umbanda Esotérica adaptava-se a um modelo de religião afro-brasileira mais elitizada, embranquecida e (quase) europeia.


Pai Rivas em 1987 torna-se seu sucessor e passa a conduzir a raiz da Umbanda Esotérica. A partir deste momento, com toda delicadeza e respeito ao tempo coletivo de cada um, Pai Rivas dirige todos os rituais e, paulatinamente, retifica algumas questões anteriormente mencionadas neste texto: evolucionismo espiritual e social, racismo, misoginia presentes em seu antecessor. Ao operar um deslocamento do Ifá - da margem para a centralidade ritual - Pai Rivas não apenas resgata os fundamentos deste método oracular como passa a vivenciar sua ética. Isto significa um duplo caminho. O primeiro é, como mencionado, o uso litúrgico e ético do Ifá. O segundo é a autonomia dada à Umbanda Esotérica. Autonomia porque ela não necessita mais estar sob o jugo das tradições brancas europeias. Não há mais necessidade de valorar um concordismo social (com o catolicismo, kardecismo, religiões orientais) porque os tempos são outros e, como toda tradição, a Umbanda Esotérica também exigiu suas mudanças de acordo com o que a espiritualidade e a sociedade as colocou


É fácil demonstrarmos algumas evidências: Pai Rivas iniciou mulheres na Umbanda Esotérica, como não era realizado antes. Pai Rivas é contrário a toda a qualquer forma de discrimanação seja ela racial ou por orientação de gênero. Ele retifica assim o evolucionismo espiritual e social, racismo, misoginia e, ao mesmo tempo, ratifica a centralidade do Ifá e de sua ética.


Tudo isso me leva a um questionamento. Os que dizem seguir a Umbanda Esotérica, são coniventes com tais discriminações? Se sim, isto seria lamentável, especialmente aos que se afirmam como pais e mães de santo… Certamente, se Pai Matta estivesse vivo ele mesmo teria propostos mudanças, mas as deixou para seu sucessor realizá-las no tempo devido, já que em livro ele mesmo colocou que outras fases viriam. Então, há duas possibilidades. Ou são eles próprios sujeitos coniventes com tais discriminações ou não seguem Umbanda Esotérica alguma… porque a Umbanda Esotérica não está enrijecida em um livro ou em uma foto, mas está em constante mudança.


A Tradição nas religiões afro-brasileiras, seja ela nas umbandas, encantarias ou candomblés não são fixas. Não são reconhecidas pela literatura. Não se faz pai ou mãe de santo memorizando livros. Longe disso, a vivência ética afro-brasileira está obrigatoriamente vinculada com a experiência religiosa cotidiana nos terreiros junto a um pai ou mãe de santo que lhes transmitam os conhecimentos-vivências. Deixo mais algumas perguntas então: os que dizem hoje fazerem

esta Umbanda Esotérica que desconhece Ifá propugnado pór Pai Matta, que valorizam o Cristo e as palavras "doces ao ouvido" viveram com Pai Matta? Foram iniciados por ele?


Como diz, Pai Rivas, discursos de caridade, fraternidade e boa vontade podem muito bem ser úteis para aqueles que concordam com discrepâncias várias, com um mundo de "fachada". Esta espiritualidade de fachada difere e muito de capacidade e responsabilidade coletiva, estas sim que não se escondem em palavreados sedutores, mas se mostram efetivamente em realizações.


Yacyrê.

(Érica Jorge)



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Érica Ferreira da Cunha Jorge
Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais - UFABC.
Professora Pesquisadora UAB/UFABC.

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