Aranauan, Saravá, Axé!
Somos adeptos de uma Religião de transe, que prima pela tradição Oral e que encontra na experiência a melhor forma de viver o Sagrado. Este assunto é encantador e igualmente explorado pela academia. A experiência dos Orixás já virou tema de tese na Alemanha, por exemplo. Gostaria aqui de compartilhar ideias vivas e vivenciadas, comentando como ações simples, porém sob os auspícios de um pai ou mãe de santo consumado, despertam claramente esta experiência com o Orixá.
Todos nós que estamos no terreiro possuímos funções e certamente muitos ficam responsáveis pela higiene física e astral do ambiente. Esta é uma das funções que ocupo no Centro de Cultura Viva das Tradições Afro-brasileiras que é dirigido pelo Pai Rivas, nosso Mestre Espiritual. Para minha feliz surpresa, acompanhando a limpeza do Centro com o Pai José Roberto (mestre Yamatiara – iniciado por Pai Rivas), fui convidado por ele a limpar os assentamentos de quatro Orixás: Ogum, Ossaim, Oyá e Obaluaiê.
Confesso que foi um momento de profunda alegria receber agô do Pai Rivas estendido ao Pai José Roberto para limpar fisicamente os assentamentos compostos por elementos da natureza, utensílios domésticos (panelas, pratos, colheres) e outros que quando ritualizados incorporam, ou para usar uma expressão mais adequada, assentam de fato o Orixá naquela representação manifesta.
Aprendi com Pai Rivas que limpar fisicamente o templo, desde o salão ritualístico até os sanitários, é um exercício de limpeza da sua mente e do seu corpo físico também. Com o Sr. Urubatão da Guia incorporado em Pai Rivas ouvi também palavras preciosas que não esqueço mais: Em Aruanda você será observado não pelo cargo que ocupou, mas pelo quão bem você cumpriu com o que lhe foi confiado.
Bem, diante destes simples e profundos ensinamentos peguei o balde com as águas de oxalá, um pano branco limpo e seco e fui ao encontro das representações simbólicas destes quatro poderesos Orixás. Ao chegar em Ogum, comecei a passar o pano úmido para retirar a poeira que naturalmente acumula e para minha surpresa o assentamento "reagia", utilizo esta palavra por falta de outra melhor, como que oferecia suas ferramentas, suas armas para serem limpas. O assentamento exigia uma limpeza delicada, sem pressionar muito os pratos sobrepostos, caso contrário desconfiguraria o mesmo.
Apenas um ponto importante. No fundamento do Orixá, as Escolas que bebem mais da tradição africana, via de regra, não fazem usos de imagens católicas para assentar o Orixá. São utilizados exclusivamente os elementos supracitados. Todo Babalawô conhece o orô (fundamento) e sabe como selecionar e encaixar estes elementos fazendo uso das rezas e outras ferramentas que fogem ao objetivo do texto para fixar uma imagem própria, indissociada do Orixá venerado em questão.
Completando o ciclo da vida, saí do assentamento de Ogum e penetrei no espaço de Ossaim. Certamente é outra vibração, outro tipo de hierofania igualmente importante. Ao limpá-lo, parecia que o assentamento estava me abraçando, recebendo minha atitude honesta e sincera com alegria. A textura dos pratos componentes do assentamento que tocava por meio do pano úmido era diferente das de Ogum. No primeiro, firme e forte. No segundo, "suculento" (como são algumas folhas) e "flexível". Pode parecer estranho isto, mas de fato a sacralização daquele espaço, a ritualização daquele momento modifica o nosso ângulo de interpretação. O relatado só é estranho para quem não possui esta vivência, os irmãos que são responsáveis em suas casas pela limpeza de objetos rituais devem certamente possuir experiências parecidas.
Transitando do lado da "vida" para o lado da "morte", sem deixar de saudar exu presente no meio da composição, chegamos ao assentamento de Oyá. Oyá possui muitos elementos metálicos e justaposição dos pratos não permitiram contatá-los com toda a superfície das minhas mãos. Por isto, precise usar a ponta dos dedos que enconstavam de forma rápida e pontual. Interessante que este gesto parecia que o assentamento estava vivo e quente... De fato, estava mesmo...
Finalmente chegamos ao assentamento de Obaluaiê. Uma vez nele, os recipientes eram profundos, por isto precisava entrar bastante com a minha mão no assentamento para limpá-lo. De alguma forma estava penetrando no lado inconsciente simbólico e, portanto, dentro de mim mesmo. Na menor desatenção minha, era tocado por pontas bem agudas de ferro que fazem parte do assentamento, lembrando-me da convicção, atenção e disposição de percorrer a senda iniciática e esta é a própria cura e auto-cura.
Enfim, foi uma experiência marcante que ficará para sempre na minha alma. Percebam meus irmãos que todo o exposto foi possível com uma "simples" limpeza física de elementos ritualísticos. Lógico que isto não acontece do nada. Graças à sabedoria do Pai Rivas que trouxe estes fundamentos que eu, na condição honrada de seu discípulo, pude experenciar isto. Tenho certeza que todas as casas com sacerdotes sérios podem oferecer experiências tão importantes para seus filhos como as que Pai Rivas me direciona diariamente.
Nós como filhos espirituais devemos abraçar estas oportunidades maravilhosas que nos são ofertadas e expressar para a sociedade fazendo uso das virtudes espirituais que adquirimos independente do estágio que elas se encontram. Novamente pegando carona nas palavras de meu Pai, se é importante incorporar o Caboclo, é necessário mais ainda incorporar os valores que Ele trás...
Meu Pai, sua benção, axé babá mi.
Ps: Quem conhece Pai Rivas, sabe que Sua proposta abrange aproximar as várias Escolas. No caso deste assentamento, focou-se o culto de nação africana. Porém, todos que estão ligados na vida iniciática com Pai Rivas passam pelas mais variadas expressões do Orixá, como ouvimos Dele uma visão de "360º' sobre o assunto nas manifestações das Religiões Afro-brasileiras.
Yabauara (João Luiz Carneiro)
Discípulo de Mestre Arhapiagha (Pai Rivas)
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