terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Dialogando com as comunidades da Umbanda ou Religiões Afro-brasileiras - Texto II

Texto II

---------- Mensagem encaminhada ----------
De: Thomé Sabbag Neto <tsabbagneto@yahoo.com.br>
Data: 1 de fevereiro de 2011 00:11
Assunto: Res: [apometria_umbanda] Ainda sobre a codificação
Para: apometria_umbanda@yahoogrupos.com.br


 

Aranauam, Saravá, Axé a todos!

Endossando as palavras do Aratish, gostaria de expor mais alguns argumentos contrários à ideia de codificação, separando-os em tópicos para facilitar:

1. Algumas pessoas afirmam que a codificação é necessária parta legitimar e legalizar as religiões afro-brasileiras, embasando-se nos anais dos Congressos realizados muito antes da nova ordem constitucional.

Meus irmãos, a Umbanda já é legal e legítima, não faltando absolutamente nada para que lhe seja reconhecida legalidade e legitimidade. Esses dois conceitos são de ordem jurídica e estão plenamente satisfeitos pela previsão ampla e irrestrita (verdadeiramente pluralista, portanto) da Constituição de 1988.

Antes da Constituição era possível se falar em necessidade de legalizar e legitimar a Umbanda. À época, o intento dos congressistas era justo e até necessário, talvez. Mas usar esse argumento hoje é pura falácia, na medida em que o intento já foi alcançado de modo integral e completo no plano jurídico.

E no plano social e cultural?, poderiam perguntar. Se por um lado é verdade que precisamos lutar pela legitimação sócio-cultural das religiões afro-brasileiras, por outro também é verdade que a codificação não pode ajudar em nada nesse aspecto.

Em suma: esse argumento pró-codificação se apoia em argumentos anacrônicos, porque, se se pode afirmar que já foram úteis ou necessários um dia, seguramente hoje não o são mais.

2. Outro argumento é o de que a codificação conferiria homogeneidade doutrinal e ritualística, sem o que estaríamos em um plano "inferior" às demais religiões.

Entretanto, com o avanço do debate, amplamente promovido pela Faculdade de Teologia Umbandista, ficou claro que a diversidade, longe de ser um desvalor inferiorizante é um valor a ser cultivado. Se é assim, das duas uma: ou (a) nós mexemos na nossa diversidade, sacrificando-a, somente para não "parecermos inferiores", por um revanchismo vaidoso e sectário; ou (b) mexemos no preconceito, ainda generalizado, de que diversidade é sinômino de inferioridade (falta de "pureza"). O viés nazi-fascista eugenista da segunda alternativa é evidente, com o devido respeito a todos os que concordam que a Umbanda "pura" deve "dominar" o mundo.

3. Quando perguntados sobre "quem" seria o responsável pela codificação, seus defensores saem pela tangente, afirmando que deveria ser invocada uma Entidade Espiritual.

A refutação do argumento é singelíssima, porém: se fosse efetivamente a vontade do Astral codificar a Umbanda, por que não o fizeram até agora? O Astral não quer codificar e não precisa da codificação para trabalhar. Trabalham onde podem e como podem, não perdem tempo com tentativa de dominar a quem quer que seja (ao contrário, lutam pela liberdade de todos) nem pretendem impor essa "pureza" que, na verdade, em bom português, é apenas imposição, violência e uniformidade estéril.

Aliás, nenhum Patriarca ou Legislador de nenhuma Tradição Espiritual da história da humanidade jamais estabeleceu qualquer Código Doutrinal ou Ritual. Nem mesmo as religiões mais próximas da ideia do Codex são, efetivamente, codificadas. No Cristianismo, por exemplo, a Bíblia Sagrada não faz considerações taxativas e exaustivas sobre a Hierarquia Celeste, não impõe padrões ritolitúrgicos e não esgota as possibilidades simbólicas de seu texto em conceitos formalmente rígidos.

Tanto é assim, que o ritual católico, que não encontra previsão expressa no "Código Bíblico", é instituído por discussões infindas entre os Sacerdotes daquela Tradição.

Se nem mesmo o Cristo codificou o que quer que seja, quem de nós seria capaz de substituí-lo na tarefa? A presunção vaidosa, aqui, encontra o seu limite máximo de soberba e falta de humildade.

4. Talvez por dificuldade de interpretação (ou por interesses escusos) alguns defensores mais empedernidos da codificação, procuram se apoiar na obra monumental de W.W. da Matta e Silva para defender o que ele mesmo combatia. Invocar o insigne escritor W. W. da Matta e Silva para tentar justificar a codificação é uma tarefa intelectualmente falsa e moralmente desonesta.

Tais "fraudes" hermenêuticas resultam do mais conhecido expediente retórico: descontextualização de trechos isolados e citados "em tiras". Posso dar alguns exemplos:

4.1. Em Umbanda de Todos Nós, Velho Matta: (a) fala de declaração de princípios que, como toda carta de princípios, só poderia ser suficientemente aberta a ponto de  poder abarcar a diversidade – que ele tanto estudou e visitou nesses Brasis afora! (ver Macumbas e Candomblés na Umbanda) – que sempre marcou as religiões afro-brasileiras; (b) fala de unificação da defesa dos ideais e princípios, que são um denominador comum entre todas as Escolas (transe mediúnico, caridade, simplicidade etc.), e não de uma determinação impositiva de um modo específico de pensar e fazer Umbanda. Não fala em momento algum de codificação, muito menos em tom apologético.

4.2. Em Mistérios e Práticas da Lei de Umbanda, W. W. da Matta e Silva fala expressamente da absoluta desnecessidade de codificar a Umbanda! Isso fica claro quando o autor afirma, cabalmente, que "A Umbanda, meus irmãos, já está codificada há muito tempo e eles sabem disso...". Ora, quem são "eles"? Precisamente os defensores empenhados na codificação da Umbanda!

Por isso, o descompasso entre a intenção de quem cita W. W. da Matta e Silva para defender a codificação e o real pensamento do autor não poderia ser maior.

4.3. Em Umbanda e o Poder da Mediunidade, seu escritor se limita a fazer uma narração de fatos (da tentativa de Leal de Souza esboçar uma codificação) sem fazer qualquer apologia, nem mesmo indireta ou sutil, da ideia de codificação. Ora, meus irmãos, uma coisa é dizer "Fulano de Tal fez um ensaio de codificação"; outra, completamente diferente, é dizer "Fulano de Tal fez um ensaio de codificação e eu concordo que isto seja necessário". A diferença é tão gritante, tão óbvia e tão inquestionável, que considero desnecessário insistir nisto.

5. Toda a fundamentação de nossos irmãos avoengos, que se reuniram naqueles Congressos, faz parte de um pensamento datado, que bebeu fortemente na fonte da escola filosófica do positivismo científico, do racionalismo cartesiano, do eugenismo europeu (o mito da superioridade branca) e de correntes que, inclusive no plano científico, já se consideram superadas e abandonadas.

Isso significa que, até mesmo do ponto de visto científico-filosófico, a invocação feita ao pensamento desses autores não se justifica hoje. Eles, como todos nós, foram fruto de seu tempo e de seu ambiente (acadêmico, cultural, social etc.). Cabe a nós escolher se ficaremos para sempre presos à atmosfera racionalista, cientificista, eugenista do passado ou se, ao contrário, avançaremos para novas conquistas e liberdades.

6. Além disso, não posso deixar de observar que, apesar do respeito acadêmico e espiritual que tenho por tais irmãos umbandistas congressistas, limitar-se a fazer referência a eles consiste em mero argumento de autoridade. Ora, meus irmãos, não é porque Fulano ou Sicrano disse isso ou aquilo, que nós devemos aceitar suas conclusões passivamente, especialmente quando esse pensamento, como já demonstrado, faz parte de um contexto específico, radicalmente diferente do nosso, de hoje.

Não é possível tentar justificar a codificação com base em argumentos de autoridade. O que precisa ser discutido é a sua pertinência atual (e não daqueles idos tempos), a sua possibilidade e, principalmente, se a codificação é mesmo um bem para a comunidade das religiões afro-brasileiras.

7. Outro argumento referido é o de que a codificação é um ideal que geralmente parte dos núcleos "mais intelectualizados" das religiões afro-brasileiras.

O argumento padece de dois vícios: (a) por um lado, ele é antes de tudo equivocado, pois temos alguns exemplos – notoriamente respeitados no campo "intelectual" – que refutam a codificação com todas as suas forças, como por exemplo a própria Faculdade de Teologia Umbandista e seu diretor geral, insigne escritor umbandista, F. Rivas Neto (legítimo sucessor, aliás, de W. W. da Matta e Silva); e, como se não bastasse, (b) por outro lado, o argumento é elitista, como se o "valor positivo" da codificação se provasse, no grito, pela "superioridade intelectual" (será mesmo?) de seus entusiastas.

Pergunto: os "núcleos mais intelectualizados" (seja lá o que isso queira significar) têm ou devem ter ascendência hierárquica sobre outros "núcleos" das religiões afro-brasileiras? Uns – os da "elite intelectualizada" – têm ou devem ter prerrogativas e regalias, podendo se impor aos outros? O absurdo é flagrante, com o devido respeito!

De todo modo, fica a pergunta: será que os defensores da codificação se identificam com "O Codificador" (com artigo definido, notem!) profeticamente anunciado em algumas obras episódicas e isoladas? Sentem-se preparados para o mister? É isso? Quem será "O Codificador"? Quem o elegerá? A maioria? Ou os "mais intelectualizados"? São perguntas sem resposta.

8. E para que não se afirme que a tentativa de codificar e dominar as religiões afro-brasileiras, como um vírus que as destrói desde dentro (bingo, Aratish!), é apenas uma "teoria da conspiração", basta ver que há livros, hoje, que carregam, em seu próprio título, a palavra Código.

Depois que o consenso geral das religiões afro-brasileiras apontou para a não-codificação, passou-se a tentar justificar o título, alterando-lhe, de repente, o conteúdo semântico. Ao invés de Código enquanto "norma", justificou-se o título como se "Código" significasse apenas a "abertura de mistérios". A variação oportunista da carga semântica das palavras é um truque falacioso muito conhecido e é recorrente entre aqueles que não firmam posição de modo claro, escondendo-se na ambiguidade das palavras para se aproveitar da "moda" e da "ocasião". Querem sempre estar por cima.

Nada impede que um autor venha a mudar de opinião com o passar do tempo, claro. Se algum defensor da codificação o deixa de ser (não é o caso, porém!), só verei tal fato com bons olhos. Para nós, que lutamos pela liberdade de culto em todas as suas formas e manifestações e que não medimos esforços pela valorização da diversidade, isso seria motivo de alegrias e até de orgulho pelo trabalho desenvolvido na Faculdade de Teologia Umbandista: ora, se até mesmo os pretensos codificadores de outrora fossem hoje contrários à codificação, o cenário nos pareceria muito promissor.

9. Em seguida, e em decorrência do que foi exposto no item anterior, alguns defensores da codificação passam a usar o termo "código" para tornar a ideia de codificação mais "simpática".

Inicialmente, a codificação era, sim, e assumidamente, uma forma de "unificar doutrinas, conceitos e ritos". Depois, por um truque semântico, passar a falar de "código" em outra acepção, mais branda e palatável...

Mas de que codificação estamos falando, afinal? A da primeira ou a da segunda acepção? A FTU, quando se posiciona contrariamente à codificação, o faz utilizando a expressão no sentido em que sempre foi empregada: uniformização de ritos e conceitos doutrinários. Usar a mesma palavra ("codificação") mas ao longo da discussão variar o seu sentido é um truque retórico para despistar as pessoas.

 

10. É imperioso decodificar, quebrar todos os códigos, decifrando-os. Por isso somos contrários à codificação. Desfazer os códigos é o que nos permite promover aberturas no fechamento rígido do cofre e ter acesso às suas riquezas, que, por não serem constituídas de uma só pobre moeda, são inapelavelmente plurais; e só porque são plurais é que são valiosas.

Fechar o cofre é o que querem os que são favoráveis à codificação. Revelar "códigos incorretos" (erros crassos de alguns Códigos por aí) é ludibriar aqueles que se quer prender e escravizar. Querer que todos os umbandistas sigam um único código é o mesmo que prendê-los e sufocá-los num cofre do qual não poderão sair facilmente ou, valha-nos Zamby!, nunca mais.

 

Aranauam, Saravá, Axé a todos!

Itarayara (Thomé Sabbag Neto)

Discípulo de Pai Rivas (Mestre Arhapiagha)




De: Aratish <aratish@uol.com.br>
Para: "apometria_umbanda@yahoogrupos.com.br" <apometria_umbanda@yahoogrupos.com.br>
Enviadas: Terça-feira, 1 de Fevereiro de 2011 0:23:50
Assunto: [apometria_umbanda] Ainda sobre a codificação

 

Aranauan, Saravá a todos,

Como dissemos anteriormente, a codificação representa uma violência porque sempre envolve a hegemonia de um grupo ou de alguns grupos sobre a totalidade da comunidade religiosa - a história das religiões demonstra este fato de forma inconteste.

No caso particular das Religiões Afro-brasileiras, o simples exame de suas origens, seu desenvolvimento e a constatação de sua diversidade em nossos dias, são indicativos seguros e irrefutáveis de que a codificação repetiria a regra histórica. A codificação é excludente - quer separar a Umbanda das Religiões Afro-brasileiras.

Seus defensores, por outro, encenam outra confusão: que a codificação pode ser uma ação orientada para um grupo específico, mas por definição, o objetivo desta é sempre coletivo. Tais alegações procuram confundi-la com algum tipo de padronização de normas internas que um determinado templo tem com os templos que lhe são associados. Estabelecendo, por exemplo, tipo de roupa, o horário de atendimento público, frequência dos ritos públicos e internos, forma de higienização física e astral do templo e dos médiuns, etc.

Codificação não se confunde com normatização de procedimentos internos.

Codificação também não é uma norma orientadora, mas uma imposição a ser acatada, que visa produzir um monólogo, onde só um fala para que todos "falem a mesma língua", o mesmo código. Ela nega a interdependência - portanto não é ética - pois todos passam a depender de um ou de alguns; deixa de ser a "Umbanda de Todos Nós" para impor a "banda do um".

Sua meta é oficializar uma única forma de conhecimento (aniquilação da episteme) em oposição ao verdadeiro conhecimento – que sempre se faz por algum paradigma provisório – impondo uma única forma de conhecer que pretende ser absoluta e não possa ser questionada (anulação do senso crítico). A codificação sempre produz alguma forma de dogma.

A codificação impõe a fé e nega a razão; é ilógica, insensata e excludente, por isso violenta.

 

Axé

Antonio Luz (Aratish)
Teólogo Umbandista
Discípulo de Pai Rivas


 

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Atividade nos últimos dias:
Umbanda: Uma forma inteligente e espiritualizada de se bem viver
por Pai Rivas
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